Autoconhecer

A alimentação como caminho de consciência

Tempo de leitura: 11 min

Uma escrita, muitas formas de consumi-la.

A alimentação como caminho de consciência
Eu leio para você…

A ingestão dos alimentos traz informações do mundo externo para o nosso interior e temos que digeri-lo para nos manter vivos. A boa saúde reside na boa digestão do que consumimos. Quando a digestão não ocorre, adoecemos. Nada do mundo exterior pode entrar e permanecer em nós sem passar por uma transformação, esta transformação é um tipo de consciência

Assim, ouso dizer que você não é o que você come, mas você é o que você digere. Algumas tradições antigas entendiam que deveríamos poder comer tudo e o corpo saudável deveria ter a capacidade de digerir qualquer coisa que consumíssemos, a doença era quando este processo  de quebra não ocorria. Assim, a saúde não é resultado do que comemos, e sim da capacidade de digestão do que ingerimos. Portanto, deveríamos dar mais atenção ao que sustenta a boa digestão. 

Digerir envolve adaptação, quebra, assimilação, afinal, precisamos nos misturar a algo que não faz parte de nós e torna-lo parte nossa. Para isso, alguns órgãos do sistema digestivo nos ajudam. O órgão baço é responsável por tornar o alimento, sangue, fazendo com que o alimento se torne nossa constituição. Para a medicina chinesa, o baço possui a capacidade de transporte de substâncias e circulação da energia que sustenta os canais dos meridianos- canais que circulam pelo corpo. O baço pâncreas (Pi), como é chamado na visão oriental, está relacionado ao elemento terra, com capacidade acolhedora, nutritiva e de germinação. 

Quando o sistema digestivo não consegue fazer seu trabalho, não conseguimos assimilar determinado alimento e o rejeitamos, por exemplo através do vômito ou diarreia ou até refluxo; sinais de que nosso corpo não quis que determinada informação, contida do alimento, fizesse parte dele. Mas para que tornemos o alimento parte do nosso sangue, tecidos e constituição, além da quebra, deve acontecer uma separação entre o que é puro ou impuro, e isso acontece bem no centro do nosso corpo. Mesmo aceitando o que vem de fora, o corpo quebra e escolhe parte para eliminação e parte para sofrer transformação e ser distribuído na forma de energia para nosso corpo. Ou seja, nem tudo o que entra permanece em nós e o que permanece, precisa ser transformado.

Somos todos alquimistas

Na visão oriental, cada órgão do corpo possui sua consciência, eles chamam de ch’i, e todas as coisas em nosso exterior também possuem seu próprio ch’i. Ao colocarmos algo de fora dentro de nós, como um alimento, estamos estimulando nossos órgãos e recebendo ch’i exterior. Pense que quando nos alimentamos com determinados alimentos, estamos construindo nossa consciência a partir da essência deles. Portanto, através de alimentação realizamos uma alquimia entre nós e o mundo. A junção do ch’i interno com o ch’i que que vem de fora, forma um terceiro ch’i, uma energia que chamamos de consciência.  

Mas como saberemos  o que comer ou evitar? A resposta é autoconhecimento. Temos que aprender a valorizar nossa própria sabedoria, presente em nosso corpo. É preciso cultivar o corpo no sentido de devoção, como meio de estarmos na vida e ganharmos consciência. É claro que podemos ter um bom corpo e nos sentirmos bonitos, mas isso deve ser consequência e não objetivo. A maturidade talvez seja o que nos faça buscar uma nova relação com esta nossa camada material. 

Quando entramos em ressonância com nosso corpo, aprendemos a distinguir aquilo que faz bem a ele antes mesmo de ingerir. Se nos atentarmos aos segundos existentes entre desejo de algo e consciência, perceberemos nosso corpo nos dizendo sobre como determinado alimento agirá sobre ele.

Ainda, não apenas alimento físico nos abastece, as informações também. Elas colocam, igualmente, o mundo externo dentro de nós. E se precisamos digerir alimentos – separando o puro do impuro e transformando-o em sangue, energia e consciência –  o mesmo devemos fazer com informações. Precisamos aprender a discernir o que se tornará parte de nós. Assim como alimentos, informações também se tornam nossa consciência.

Observe a quantidade de conteúdos aos quais estamos expostos o dia inteiro, na vida pessoal, profissional, social, estamos sempre recebendo estímulos e criando representações mentais. Mas diferente da digestão, que acontece de forma autônoma, ou seja, sem que precisemos pensar, nossa mente irá fazer o processo de digestão de informações de forma consciente ou inconsciente. Portanto, temos uma margem de escolha perante este processo. Assim como o processo digestivo faz a separação, nossa mente deve aprender a discernir entre o construtivo e destrutivo. Este é o papel do autoconhecimento em nossa vida.

Capacidade de contemplação

Apesar de ser a mente quem faz o julgamento sobre o que deixaremos ou não fazer parte de nosso universo interior, ela não deve se basear apenas em processos mentais para fazê-lo. Isso porque a consciência não é um atributo exclusivamente mental, para que possamos nos tornar conscientes precisamos incluir as emoções e espiritualidade. É a tríade: mente, emoções e nosso eu, que nos tornará capazes de exercer o que, talvez, seja a função mais importante do baço, a capacidade de ponderar e refletir, todas estas são partes da capacidade de contemplação. 

Contemplar é um processo que acontece em três fases:

  1. AVALIAÇÃO das informações provenientes da linguística e sensações, ou seja, do que experienciamos.
  1. JULGAMENTO DAS  PROBABILIDADES, que distribui possíveis resultados seguindo cada caminho. Vemos o potencial de perdas e ganhos. A crítica, pré-conceitos e julgamentos de valor, diminuem a nossa capacidade de distribuir probabilidades.
  1. DECISÃO, a partir dos processos anteriores, agimos em direção àquilo que elegemos como nossa verdade.

E na era VUCA /sigla derivada das iniciais das palavras inglesas  Volatility (volatilidade), Uncertainty (incerteza), Complexity (complexidade) e Ambiguity (ambiguidade) / e BANI / que deriva de Brittle (frágil), Anxious (ansioso), Non-linear (não linear) Incomprehensible (incompreensível) em inglês/ – conceitos usados para descrever o mundo em que vivemos atualmente, de mudanças rápidas e com diversas facetas, precisaremos cuidar para não nos tornarmos “infoxicados”. 

Isso acontece quando cuidamos do ambiente no qual estamos inseridos, porque dele virá nosso primeiro contato com o mundo externo. Mas se isso é pouco controlável, existe uma parte que cabe a nós, selecionar o que vamos tornar parte nossa. Assim, nem tudo que recebemos precisa “entrar”. Aprenda a distanciar-se dos fatos, observar e perceber como se sente diante de certas informações, perceba que sensações seu corpo experimenta quando está diante delas. Assim como alimento estragado cheira mal e têm aparência não apetitosa, conteúdos verbais e não verbais também nos “cheiram” mal ou não são saborosos. Perceba estas qualidades, presentes nos alimentos, presentes no mundo no qual você transita. 

A capacidade de perceber o que nos nutre ou nos intoxica é um atributo humano, todos nós o possuímos, mas precisamos aprender a desenvolvê-lo. Nossa educação, em grande parte, ocupou-se de nos ensinar sobre quais alimentos fazem ou não bem, mesmo que não nos aparentassem apetitosos. Aprendemos a comer mesmo sem gostar; num primeiro momento isso foi importante, pois atrás de aparências desagradáveis, pudemos descobrir novos sabores agradáveis, afinal, a criança/jovem ainda não têm a capacidade de discernimento madura. O problema é que levamos algumas  crenças adquiridas nesta fase para a vida adulta, assim, continuamos a escutar os outros para nos dizerem o que “nos faz bem” e fomos deixando de escutar nosso próprio corpo.

Assim, comemos sem apetite, experimentamos sem desejo, repetimos pratos mesmo que nos tenham feito mal na vez anterior, ficamos condicionados aos hábitos e nos tornamos reféns deles. Isso faz com que também deixemos de exercitar órgãos de percepção sutis, aqueles que nos dizem sobre o que nos faz bem emocionalmente. No lugar desta percepção aguçada, aprendemos a usar a mente como único órgão da verdade, o problema da mente é que a mente, mente!

O baço – a casa pensante

Para a medicina chinesa, o uso excessivo da racionalidade e intelecto para processar o mundo despendem muita energia de um órgão em específico, o baço pâncreas. Interessante pensar que este órgão também está relacionado a digestão dos alimentos físicos. Mas não surpreende esta relação, já que, para as antigas medicinas, corpo e mente operam juntos. 

Fazendo a analogia do órgão com elemento terra, na qual jogamos uma semente e ela se frutifica, o cérebro inteligente vem do que semeamos da alimentação e da ajuda do baço. Algumas vezes, percebemos em nós a incapacidade de reter informações, por exemplo,  quando lemos muitos e não gravamos, isso pode ser deficiência de baço. Mas o excesso de sua ação, pode levar o indivíduo a pensamentos repetitivos e até obsessivos.

Nesse sentido, o baço, além de fornecer suprimentos e produzir sangue e ch’i, exerce a atividade intelectual, favorece o uso da razão, concentração, capacidade da resolução e  contemplação. Ele monta a lógica diante de muitas informações e as ordena. Neste sentido, a capacidade lógica vem dele. 

Classificação, hierarquia e preocupação

Na via oposta, a alimentação é capaz de influenciar a atividade intelectual, comandada pelo baço. O baço pâncreas não é responsável pelo nosso pensamento em si, mas pela classificação das sensações que captamos pelos órgãos dos sentidos. Quando não conseguimos classificar, colocar uma hierarquia nas percepções, o que possibilita uma resposta, geramos uma espécie de hiato em nossa mente. Este trabalho de organização é do baço pâncreas. 

Essa classificação e hierarquização são importantes porque nem tudo que experienciamos no dia a dia é fundamental o tempo todo. Por exemplo, se já sei dirigir, no dia a dia ao volante, não preciso usar a parte do cérebro que presta atenção em cada detalhe do ato de dirigir, como prestar atenção na troca marcha, aonde é o freio, retrovisor e todos os detalhes que foram necessários prestar atenção quando estávamos aprendendo. Esse mecanismo de hierarquia nos protege de não colocar tudo o que nossos órgãos sensoriais experienciam no centro da mente. Temos uma espécie de radar que capta o necessário, classifica dentro de um grupo de informações pré registradas e “acalma” a mente atenta, dizendo a ela sobre coisas já conhecidas, fazendo-a relaxar, sem precisar estar no controle de todas as tarefas. Isso deixa espaço livre para fazermos outras coisas. Por isso conseguimos dirigir e conversar ao mesmo tempo, por exemplo. A mente consegue focar uma coisa por vez, o resto ela o faz por esse automatismo. Caso esse mecanismo não existisse,  enlouqueceríamos diante de tantas informações sensoriais às quais estamos expostos o dia inteiro. A classificação é essencial para montarmos uma ordem em nossa mente para executar tarefas, desde a mais simples, como se vestir, porque até isso exige uma organização. Também, não podemos fazer tudo que desejamos o tempo todo, precisamos de uma organização mental para saber quais atitudes tomar em cada momento. Tudo isso está relacionado ao baço, através dele, o ser humano observará e classificará o seu entorno, portanto, ele está ligado ao estabelecimento de limites, criação de regras e construção de leis, ou seja, princípios básicos para a edificação de uma sociedade.

O processo de envelhecimento faz com que que o ser humano tenha tendência a tornar-se mais rígido, inflexível e menos criativo. Afinal,  a nutrição do cérebro, através da alimentação e atividade do baço, são, naturalmente, diminuídas. Assim, cuidar da alimentação ao longo da vida é uma fórmula para envelhecermos e continuarmos flexíveis e criativos, apesar da idade. Quem cuida do baço cuida de sua mente.

A preocupação, o ato de pre-ocupar a mente com o futuro, que não existe,  é resultado de desequilíbrios do baço. Ao nos preocuparmos baseamos nossas verdades em representações mentais e suposições e não nas experiências as quais estamos, de fato, vivendo . Com isso, deixamos de fazer a ponderação, pulando as etapas da contemplação.

Medicina do Estilo de vida

Ao conheceremos mais sobre nosso corpo e mente, e  incluirmos a espiritualidade em nosso cotidiano, vamos nos tornando  autoconscientes, ou seja, conhecemos mais a nós mesmos. E a medida que nos entendemos enquanto seres complexos- portadores não apenas de camadas materiais, como o corpo físico- podemos fazer escolhas para nossa saúde integral, instaurando bons hábitos nesse objetivo. A conexão com nossas camadas mais sutis, aquelas além da corporalidade física, trazem nosso sentido à vida e passamos a ver a alimentação como um dos caminhos para consciência.  Ela se torna muitos mais do que ingestão de alimentos naturais, orgânicos ou biodinâmicos, mas o resultado de uma junção de fatores:  físicos, emocionais, mentais e espirituais. É a conexão disso que faz um alimento tornar-se “bom” ou “ruim” para nosso organismo. Daí, a construção de hábitos para um estilo de vida saudável envolve alimentação, ambiente, cuidados com corpo, descanso, lazer, relacionamentos, realização pessoal, profissional, financeira, setores que compõem a roda da vida e que ancoram a visão da Autoconhecer.

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